Leituras do mês de Abril
O Lugar, de Annie Ernaux
Chorei, chorei de boca quadrada, meu deus, como eu chorei, ora escorrendo pela parede, ora me jogando na cama. Em outras vezes, enquanto me arrumava para o trabalho, chorei lentamente, as lágrimas grossas escorrendo, fazendo desintegrar as três camadas de creme que eu havia passado no rosto minutos antes. Comecei a ficar com medo do livro, do seu fim, esqueci que um livro bom não acaba, fica reverberando por dias, meses ou anos, assombrando ou iluminando as noites. Depois de terminada a leitura, que é bastante curta já que O Lugar tem apenas setenta e duas páginas, tive que recorrer a mim mesma para fazer uma análise das perturbações (ou elucidações) que o livro me entregou. Lamentei não estar levando a terapia a sério com o terapeuta esquisito para que pudéssemos conversar sobre esse livro, afinal, alguém tinha conseguido escrever algo que sempre senti e não consegui expressar, entender. Serei eternamente grata à Annie Ernaux por isso.
“eu participava de um estilo de vida que não se alterava em nada com a minha presença”.
É uma leitura fluida, crua, direta e deliciosa mesmo me revirando do avesso. Talvez não revire você que está lendo esta newsletter. :) Vai saber…
Annie Ernaux fala das memórias da infância, principalmente do seu pai e também da sua travessia entre classes sociais, as mudanças na língua, no comportamento, a sensação de não pertencer a nenhum lugar. Se você permitir, pode ser que esse livrinho de setenta e duas páginas também acompanhe você por muito mais tempo do que o esperado.
A Ordem do Dia, de Éric Vuillard
“Assim, os vinte e quatro não se chamam nem Schnitzler, nem Witzleben, nem Schmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem Heubel, como a certidão de nascimento nos incita a crer. Eles se chamam BASF, Bayer, Afga, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. É por esses nomes que nós os conhecemos. Nós os conhecemos muito bem. Eles estão lá, no meio de nós, entre nós. São os nossos carros, nossas máquinas de lavar, nossos produtos de entretenimento, o seguro da nossa casa, a bateria do nosso relógio de pulso.”
Outro livro curto, mas esse é curto, grosso e irônico. Ganhou o Goncourt, um dos mais importantes prêmios literários em língua francesa. O assunto aqui é a Segunda Guerra Mundial e a expansão do nazismo. O autor começa contando como foi costurada a aliança entre o recém empossado Adolf Hitler e um grupo de grandes industriais alemães para angariar fundos para o partido nazista, em 1933. Conforme o autor vai narrando o que aconteceu, o leitor vai ficando enfurecido juntinho com ele.
Éric zomba de muitos personagens que certamente passaram por um “rebranding” nas mãos de Joseph Goebbles e por isso parecem “grandes personagens”. A segunda parte do livro é sobre a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 1938, e é aí que está o pulo do gato. Éric Vuillard conecta esses dois episódios e mostra como uma desgraça não é construída da noite pro dia. Aqui no Brasil a gente sabe bem disso, não é? ;). A construção da barbárie é feita tijolo por tijolo e depende da ação de muitos e da omissão de tantos outros.
É um livro pra aplaudir em pé!
O autor tem uma lista razoável de livros e estou atrás de todos eles. Virei fã demais!
A Inteligência das Aves, Jennifer Ackerman
Fui surpreendida por esse livro da Jennifer Ackerman que tenta desmistificar a ideia de que aves não são seres inteligentes. Spoiler: são muito inteligentes, sim! E com habilidades bem interessantes que eu jamais havia pensado. Existem 10.400 espécies de aves e elas surgiram há mais de 100 milhões de anos. A bicharada sobrevive em tipos de ambientes diferentes e em situações que exigem muita engenhosidade. Nunca mais vou olhar para um pássaro do mesmo jeito. Deu até vontade de estudar biologia.
“Talvez, por serem tão diferentes dos seres humanos, é difícil para nós dar o devido crédito às suas capacidades mentais. As aves são dinossauros, descendentes das poucas espécies sortudas e flexíveis que sobreviveram ao cataclisma que eliminou seus primos. (...) Enquanto aprendemos a ficar eretos e caminhar com dois pés, elas aperfeiçoavam a leveza e o voo. Enquanto nossos neurônios se organizavam em camadas corticais para gerar comportamentos complexos, as aves desenvolviam outra arquitetura neural, diferente da dos mamíferos, mas, pelo menos, de algumas maneiras, igualmente sofisticada.”
A Boba da Corte, Tati Bernardi
No meio disso tudo, uma leitura leviana. (hehe) Pra ler numa sentada, sem grandes pretensões. É bom deixar o preconceito com a Tati Bernardi de lado de vez em quando. O lance aqui é se divertir com o ódio destilado aos herdeiros paulistanos, ranço que super compartilho. Tati cresceu na vida, mas percebeu que entrar para o clube de intelectuais não era uma tarefa tão simples assim. Também não sei se o livro é uma mea culpa tipo “mãe, desculpa, eu cresci na vida!” ou “putz, cresci na vida e continuei achando tudo uma merd@!”. Divertido.
Leituras em andamento:
A Corneta, Leonora Carrington
A Natureza da Mordida, Carla Madeira
Música para Camaleões, Truman Capote